Memórias de fracassos, só aqui me dizem que virás.
Aguardo fixando-me no horizonte, é mais fácil fugir do que tenho a dizer, do que saber que é tarde demais para me ir embora.
Vou para uma estrada que se me afigura tão longa, tão árdua, perco e deito o olhar na imensidão e eco de pedras feito, rochas que jazem no chão dando figura ao caminho.
Ruínas de gestos, palavras e actos, que trago com a minha boca mnemónica e recolectora nas rodas da locomotiva.
A noite era um túnel, olhos e reflexos nas janelas vagueavam como presas para o olhar voluntarioso. À noite todas as auras se misturam com a própria alma da noite. Como se as trevas reclamassem em uníssono, para si, parte da identidade dos espíritos que não comungam nos leitos a reverência do astro nocturno.
Assim que caminho saindo da boca do Metro, acalcanhando o soalho de pedra calçada,
Tombo os olhos no chão que será partida depois da chegada.
Num bar de um dos dormitórios de Lisboa, encontrei um segredo mal guardado.
O seu recheio (do bar, não do segredo...) era composto por clientes com idade madura como as umas que entram em transe na orgia do mosto...(como se fosse a persistência temporal a causa da mudança das coisas...)
Dizia, a esmagadora maioria dos utentes era já um pouco entrada na idade (que expressão épica e bonita...), e cada um sendo estrangeiro em causa própria.
Um bar de retornados(às velhas lides do sexo).
Falamos aqui do eco que se explana pelos três espaços do tempo, senão vejam...
Por um motivo ou por outro, após um certo período (Passado) de vida em comum com alguém, divorciam-se(normalmente esperam até os filhos estarem criados) passam uma temporada na terra de ninguém (terra sem alguém, neste caso), e depois de algum ressentimento, revolta e amargura, decidem divertir-se (Presente), gozar-se o que não se gozou quando o tempo aparentava ser próprio... e a existência parecia limitada a fraldas, rotinas e paciência.
As mulheres têm de ser boas na cama, e os homens têm de ser divertidos(para grunhos já bastavam os ex-maridos...) e altivos (uma forma de se fazerem desejados – inflacionados o seu valor – mas tão desesperados por serem comprados – por elas, mas mais por eles – ainda serei homem?), não-chatos. Têm todos de ser poetas. Como?
Os poetas e as poetisas sofrem, que sofram... dizem todos, desde que não gritem e continuem a produzir coisas bonitas, beleza, seja ela a face de um poema, seja ela um elogio a um atributo da vida banal ou a um atributo do parceiro(a) em vias de o(a) ser.
Conhecer pessoas, comer mulheres, conhecer e ouvir as paradas nupciais dos machos (no fundo, a «guerra dos sexos é uma guerra pelas almas).
É difícil e imperioso justificar o primeiro passo. Mas o desejo é sofístico, encontra torce e forma pretextos.
A música composta de ditirâmbicos batimentos de génese africana, e de vozes chorantes entoando temas de sofrimento amoroso( e por vezes de emancipação boçal e bacoca), faz as honras da casa diluindo as inibições, juntando as mulheres embaladas pelo canto dos ex-mancebos, e os machos embalados pelo canto da tesão e o gás da cerveja.
È através do pecado que se tem o primeiro vislumbre da salvação.
Os tempos de sedução da mocidade que já não volta, já não voltam, mas a vontade é forte e desengonçada, e encontramos no meio da pista de dança velhos espécimes retratos fieis de uma época que já passou.
A idade preenche os sonhos da juventude. A possibilidade afoga-se no girar esférico do tempo.
Vestidos demasiado espampanantes, calças demasiado justas - apertadas, demasiado gastas, demasiado bem (intencionalmente) arranjadas, peitos peludos demasiado à mostra, cabelos demasiado pintados, grisalhos demasiado grisalhos... ou porque o gosto ficou parado no tempo, ou porque a carne de quarenta, cinquenta anos precisa de mais maquilhagem para se impor, para se fazer presente, para esconder as pegadas do tempo.
E no entanto, uma contradição ao nível da derme...maquilhagem em cara de velha desfigura.
Estamos sitiados na nossa época, e esta inactividade cansa, e o exercício é estar inactivo.
Os cotas empunham as imperiais (que estranho e interessante nome!) à cabeça da mão, como se os copos e o respectivo dístico fossem os símbolos de alguma coisa.
Com um copo de cerveja nunca se está propriamente só, possibilita sempre uma fuga, uma desculpa (saborear a cerveja) se acaso algum olhar inquirir sobre a sua presença.
Víamos, dizia eu, este grupo de homens requisitando companhia (sem ela não sabem que fazer, e parece que não se vive), em montes encostados à parede, como nos bailes antigos / da mocidade, em que suavam as camisas de cetim e envergavam o vigor pueril de jovens homens , nos movimentos bruscos das danças, nos pequenos sorrisos confiantes e plenos de inocente arrogância ( a força da Terra palpita efervescente naquelas veias), além de erecções mal disfarçadas à flor de calças justas assentes em bocas de sino.
Vigor esquecido pelos anos passados em armazéns e fábricas, e oficinas, e alguns escritórios, outros obreiros de rugas.
A parede ampara agora o seu peso e por vezes um pé, uma mão no bolso , a cerveja encostada à (mais larga) cintura, à cabeça de um braço arrumado num ângulo de noventa graus...e os olhos arremessados na atenção à pista onde as fêmeas dançam , olhos de rapina , não deslumbrados mas sombrios de desejo.
Refugo matrimonial.
Vivem(os) com as ruínas e vamos demasiado longe no tempo para encetar nova construção, pelo menos com alicerces mais puros e sinceros. Temos um passado.
O tempo mais belo é o período do primeiro enamoramento. Só o amor recordado é feliz. Só amamos quem, quando perdemos. E volta tudo ao início.
Normalmente os menos deslumbrados...porque a mágoa de deitar fora e cara uma crença na felicidade, anos em comum (afinal a vida não tem aquele sentido que pintámos – como pude eu acreditar - ...) amarga para uma convicção na própria felicidade.
Afinal, sentem-se como se tivessem perdido o combóio e desperdiçado o bilhete.
Oscilamos como um pêndulo entre o filme de aventuras a cores no cinema, e o épico a preto e branco no pão nosso de cada dia. A vida é então um eterno abismo no qual nos lançamos de cabeça, sem fim, sem nada à vista.
Vou de novo para longe, jogo as pernas ao carreiro , reparo de novo que hoje as pessoas só olham umas para as outras pelos reflexos dos vidros do Metro, seja por pudor, seja pelo que for. Chamamos pelo mundo...Quando ele se aproxima, dizemos que não era este.
Preparo-me para sair da estação, um cheiro acre intenso a urina invade o ambiente, é de manhã, as pessoas vão trabalhar para a rotina, o Metropolitano está saturado.
Quase todos pensamos que o cheiro é um infeliz vestígio da vida de diversão nocturna, em que ébrios poisam pelos cantos da cidade marcas de territorialidade inconsequente.
Repousei o assunto.
Saudei-me a mim próprio na partida.
Ao subir as escadas para apanhar o autocarro no Areeiro (sempre o Areeiro), encostado também à parede, jaz um velho de face hirta e assustada, as pessoas passam por ele e vão demasiado hipnotizadas nas suas cogitações da habitual jornada, para repararem nele. Algumas reparam, apercebem-se e fazem por ignorar. Vejo-o encostado, agarrado a um dos ferros do corrimão, em desesperante eminência de vergonha, temendo sobretudo, o peso dos olhares dos outros (juízos vagamente kafkianos), enquanto abana as calças molhadas e vê escorrer o comprometedor líquido que esbofeteia quem pára no tempo para pensar sobre ele.
Irónico, ser a urina a lembrar-nos do Homem e do tempo, a luta contra o tempo (luta madrasta), em que o Homem perde sempre.
Mandam-nos para a vida, como ensinam uma criança a nadar...mandam-nos para dentro de água e dizem para dar-mos aos braços.
Depois ele mija-se.
Só lhe falta chorar (a vontade não é nada pouca), mendiga compreensão com os olhos, constrói expressões faciais de extremo desagrado (vénia à multidão) e impotência perante a situação.
A verdade é que ninguém repara nele e no cheiro intenso que se entranha nas narinas. Mas ele como que se sente no centro no centro de um tubo de ensaio observado ao microscópio por todos, e corrói-se porque já não funciona como os restantes( está de parte?), a entropia toma conta de tudo.
Parece uma criança (Futuro) , uma criança que aprende agora as leis de higiene e etiqueta, que se prepara para a passagem do tempo vindouro.
A passagem de Cronos.
in Olisipo
SK in memoriam
23 de julho de 2007
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